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Porque o ano que passou foi um divisor de águas para o gerenciamento de crises no Brasil.

Por mais que nos sensibilizemos diante de tragédias, enquanto elas acontecem longe de nós temos uma falsa sensação de proteção.

Em 2019 esta lógica foi diferente.

Pela magnitude das tragédias e pela sequência de fatos, nossos medos, fragilidades e vulnerabilidades vieram à tona.

TRAGÉDIAS SUCESSIVAS

No dia 25 de janeiro de 2019, a barragem de rejeitos de minério da Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), administrada pela Vale, se rompeu. A tragédia provocou 252 mortes.

No dia 13 de fevereiro, dois dias após a morte trágica do jornalista Ricardo Boechat, o José Simão publicava no Twitter “Cancela 2019”. Uma seguidora chamada Adriana Cavilha respondia: “Eu queria voltar ao dia 1o. Mandar fiscalizar a barragem. Avisar aos cariocas das chuvas, transferir os piás dos containers e falar pro Boechat ir de carro”.

As tragédias infelizmente não terminariam alí. No dia 13 de março um massacre em uma escola na cidade de Suzano, no interior de São Paulo, vitimou 10 pessoas, entre crianças e professoras.

Em menos de três meses o Brasil estava enlutado por Brumadinho, pelas mortes no Rio de Janeiro e em São Paulo com as fortes chuvas daquele verão, pelas perdas dos garotos que treinavam nas seleções de base do Flamengo em um incêndio nos containers onde dormiam, pela perda de Boechat, vítima da queda do helicóptero onde viajava e pela tragédia da escola de Suzano.

A hashtag “Cancela 2019” virou trending topics do Brasil no Twitter e as tragédias seguiram assolando 2019 como ondas recorrentes de um tsunami.

Durante o ano vimos prédios desabarem no Rio e em Fortaleza por negligência na construção e manutenção dos edifícios. Um apartamento explodiu em Curitiba durante uma impermeabilização de sofá. Quatro pessoas morreram após explosão em uma distribuidora de gás em Boa Vista. Um incêndio de grande proporção no Hospital Badin no Rio mobilizou muita gente no salvamento das vítimas, mas acabou resultando na morte de dezenas de pacientes.

Fomos expostos a cenas de horror diante dos massacres em presídios no Amazonas e Pará.

Acompanhamos também com tristeza todos os meses nos noticiários vítimas inocentes da guerra entre polícia e bandidos nas favelas das grandes cidades, como a menina Agatha no Alemão e os nove jovens que morreram pisoteados após o baile funk em Paraisópolis.

TRAGÉDIAS AMBIENTAIS

2019 também ficou marcado por grandes tragédias ambientais.

As queimadas da Amazônia e estados vizinhos tiveram este ano repercussão mundial e tornaram-se o centro de disputas políticas nacionais e internacionais. Além disso, este tema foi alvo de um dos maiores volumes de fake News da história brasileira.

Neste contexto diversas celebridades internacionais se pronunciaram contrariamente ao nosso governo, que por sua vez culpou as ONGs ambientais pelas queimadas. A polícia prendeu ativistas, as tensões internas em torno do tema cresceram muito e a presidência apontou inimigos externos para defender a soberania nacional. Como consequência a imagem do país internacionalmente sofreu uma crise.

O país também assistiu à chegada de um misterioso óleo nas praias do nordeste e sudeste. Este grave incidente ainda provocou diversas crises institucionais por conta de declarações precipitadas do governo, pela terceirização de responsabilidades entre unidades federativas na contenção do problema e pela ineficiência das investigações.

ALÉM DAS TRAGÉDIAS

As crises em 2019 foram muito além das tragédias. 2019 foi um ano marcado por declarações infelizes e atitudes vergonhosas, seja por políticos, executivos, artistas, esportistas, personal influencers, pessoas comuns e até mesmo por líderes religiosos.

CRISES POLÍTICAS

No primeiro ano do novo governo o canal de comunicação oficial foi o Twitter e a tônica foi dada pelas inúmeras declarações polêmicas do presidente, de seus filhos, de Ministros de Estado e até mesmo de Ministros do STF.

A Comunicação presidencial não oficial também agitou inúmeras vezes as redes sociais. Nem a quarta-feira de cinzas foi poupada após o compartilhamento pelo presidente de um vídeo com uma cena do carnaval de São Paulo considerada pornográfica.

Tampouco a então intocada Operação Lava-Jato saiu imune em 2019. O agora Ministro e então Juiz Sérgio Moro, o procurador Deltan Dallagnol e outros personagens vistos até então como heróis contra a corrupção viveram uma grave crise de reputação. Seus celulares foram hackeados e mensagens trocadas entre eles por meio do aplicativo Telegram foram vazadas. A partir da análise destas mensagens, membros da Força Tarefa da Lava-Jato sofreram uma série de acusações pelo jornalista Glenn Greenwald e pelo site The Intercept Brasil por supostas irregularidades na condução de suas atribuições.

Embora tenha havido um abalo na imagem de todos os envolvidos com a exposição do conteúdo das mensagens, pesquisas de popularidade no fim do ano apontaram que tanto a imagem da própria Lava Jato, como do Ministro Sérgio Moro continuam em alta junto à maioria da população.

CORRUPÇÃO E COMPLIANCE

As operações contra corrupção dos últimos anos fizeram com que muitas organizações voltassem suas atenções para a criação e o aprimoramento de suas estruturas de governança e políticas de compliance, fazendo crescer no país a cultura da legalidade, por receio de crises institucionais.

No entanto, o histórico de anos de relações impróprias entre organizações e governo continuaram em 2019 a produzir crises para organizações de todos os segmentos. A construção civil foi um dos setores que mais sofreu consequências.

Em 2019 vimos empresas outrora poderosíssimas como a Odebrecht pedindo recuperação judicial e até mesmo mudando de nome. No mesmo caminho, concessionárias de rodovias de várias regiões do Brasil como a Rodonorte e Ecorodovias fizeram acordos de leniência milionários com o MPF.

SAÚDE PÚBLICA

A saúde pública no Brasil sofre uma crise permanente, mas neste ano o país teve ainda que lutar contra uma doença que até poucos anos atrás parecia erradicada.

Fruto de uma epidemia global, surtos de sarampo atingiram diversos estados brasileiros em 2019, vitimando milhares de pessoas.

O desafio do governo consistiu em elevar a cobertura vacinal da população para o patamar ideal, mas houve diversos fatores dificultadores. Dentre eles o medo da população de reações à vacina, a falsa sensação de segurança em relação à doença, além de grupos antivacina e muitas notícias falsas sobre o tema.

Na corrente da vacinação 9 mil passageiros de um navio da MSC precisaram ser vacinados em Santos após a descoberta de 19 tripulantes com a doença a bordo.

ASSÉDIO SEXUAL

Acusações de assédio sexual têm levado celebridades de todo o mundo a crises de imagem muitas vezes irreparáveis. Movimentos como o Me too, que começou em 2017, ajudaram a trazer à tona diversos casos silenciados durante anos.

Até mesmo a Igreja Católica, entidade que sofreu muito com acusações de assédio sexual por religiosos nos últimos anos por todo o mundo, terminou o ano abolindo o sigilo pontifício de investigações de abuso sexual na Igreja. Esta teria sido uma demanda chave de parte dos líderes católicos, inclusive do próprio Papa Francisco, após uma reunião de cúpula sobre este tema.

No Brasil, um caso de assédio sexual envolvendo o jogador Neymar movimentou o país em 2019. Uma jovem brasileira com quem o jogador teve um caso em Paris o acusou de estupro. No mesmo dia, as vésperas da Copa América, Neymar publicou um vídeo expondo trocas de mensagens e fotos íntimas do casal para provar sua inocência. Imediatamente ele ganhou a opinião pública, que por sua vez condenou a garota por oportunismo. Mesmo após inocentado formalmente da acusação após as investigações, o jogador teve sua reputação mais uma vez abalada. Este caso somado a seguidas lesões do jogador culminou com a desvalorização de seu passe e entraves para sua transferência de clube na Europa.

COLABORADORES DESPREPARADOS

Em 2019 vimos os casos de um segurança terceirizado da Rede de Supermercados Extra matar um cliente por asfixia com o golpe “mata leão” dentro da loja, na frente de clientes e funcionários. Um segurança também terceirizado do Banco Bradesco atirou na barriga de um cliente idoso dentro de uma agência.

Em momentos de tensão, quando um incidente acontece dentro de uma empresa é comum que colaboradores mal treinados ou mesmo não treinados para crises tomem atitudes equivocadas e agravem a situação.

Se já é raro que estes treinamentos sejam frequentes e efetivos para colaboradores, o que dizer para funcionários terceirizados.

Na visão do público e para a imagem da empresa não importa se o colaborador é efetivo ou não. A reputação que está na berlinda normalmente é a da empresa onde o colaborador está prestando seus serviços.

DESCASO COM COLABORADORES

Por outro lado, as crises também acontecem por descaso das empresas em relação a seus prestadores de serviços.

As tecnológicas Uber e Rappi foram notificadas pelo Procon sobre a morte de um entregador na cidade de São Paulo, o qual teve um acidente vascular cerebral (AVC) durante uma entrega. Quando contatada, a Rappi não prestou qualquer tipo de socorro. No momento do incidente, um motorista da Uber se recusou a levá-lo ao hospital e o SAMU não enviou ambulância ao local.

Em posicionamentos oficiais, ambas buscam isentar-se de qualquer responsabilidade pelo ocorrido, alegando que prestam serviços aos motoristas e entregadores que utilizam de suas plataformas, e não o contrário.

Uma coisa é a legalidade, outra é o bom senso e o respeito pelos públicos com os quais a empresa se relaciona.

O julgamento nos tribunais pode levar anos para ser concluído, mas o julgamento popular é imediato e as empresas precisam estar cientes disso ao pesar suas atitudes e comunicação diante de incidentes e crises.

PRECONCEITO E DIVERSIDADE

Outro tema que tem sido um grande estopim de crises pelo mundo é o preconceito, seja de raça, de gênero, sexual, ou de outra sorte qualquer.

Após posar para fotos em seu aniversário cercada por negras vestidas aparentemente como escravas, uma diretora da Revista Vogue, acusada de racismo, pediu demissão para não prejudicar a revista.

Funcionários da marca carioca Loja Tres acusaram a empresa de racismo, gordofobia e assédio moral. A empresa se defendeu dizendo que o respeito à individualidade e ao estilo de cada pessoa é um de seus pilares, mas as inúmeras denúncias fizeram com que a marca sofresse uma grave crise de imagem, com exposição pública do caso.

Na era digital, discussões que seriam restritas a poucas pessoas ganham alcance numa enorme velocidade e muitas vezes pegam as empresas de surpresa.

O julgamento popular em casos como esse, que levantam suspeita de atitudes preconceituosas, condena a empresa antes mesmo que ela possa se pronunciar.

De outro lado, a Natura apostou na diversidade sexual para apresentar sua nova linha de maquiagem em 2019. Publicações no Instagram e um vídeo no YouTube contaram a história de três casais não tradicionais, com uma mulher transgênero. Os beijos lésbicos mostrados no vídeo causaram controvérsia. Reações à campanha fizeram a hashtag #BoicoteNatura aparecer no topo dos assuntos mais comentados no Twitter. Mesmo assim a marca manteve seu posicionamento por entender que a diversidade faz parte de seus valores.

INCIDENTES COM ANIMAIS

Cada vez mais incidentes envolvendo animais chamam a atenção popular e fazem com que empresas precisem tomar atitudes rápidas e efetivas para não sofrerem com ataques ä sua reputação.

No final de 2018 houve o caso da morte do cachorro Manchinha no Carrefour, que mostrou a força dos influenciadores e das entidades de proteção aos animais nas redes sociais.

Diante de uma ação de resgate de cães em um canil fornecedor da Rede PETZ pela ativista Luisa Mell, a rede anunciou o fim da venda de filhotes em sua loja. Segundo o presidente da empresa, em vídeo publicado nas redes sociais “O caso do canil de Piedade nos mostrou que, apesar de inúmeros esforços, não é possível garantir que todos os parceiros tenham a mesma preocupação que nós com o bem-estar animal… Se tem a menor possibilidade disso acontecer de novo, então não serve. A partir de agora, as 82 lojas do grupo Petz espalhadas por todo o Brasil não comercializarão mais cães e gatos.”

RECALL DE PRODUTOS

Há muitos anos as indústrias têm implantado processos cada vez mais seguros de produção para garantir a qualidade de seus produtos aos clientes finais. No entanto, como risco zero não existe, todos os anos somos surpreendidos com chamadas públicas para recolhimento de produtos defeituosos que podem trazer malefícios ao consumidor, o chamado recall.

Todo processo de recall além de dar um enorme trabalho operacional para empresa, gera custos altos e um desgaste de imagem para a referida marca. Mesmo assim, os riscos de não fazer um recall podem ser muito maiores.

Todas as automobilísticas Chevrolet, Volkswagen, Ford, Audi, Jeep, Porsche, Land Rover, RAM, Mitsubishi, FIAT, Honda, Hyundai, Mercedes Benz, Volvo, Renault, Nissan, Subaru, BMW, Lexus, CAOA Chery, Toyota fizeram algum recall nesse ano.

Entre as grandes empresas de produtos de consumo, a BRF fez recall voluntário de lotes de produtos Perdigão por risco de Salmonella. A PepsiCo faz recall de Fandangos por falta de informação em rótulos. Nem mesmo os bebês escaparam do risco de contaminação. A Kimberly-Clark anunciou recall de lenços umedecidos para bebê por presença de bactéria.

Em 2019 houve até mesmo recall de silicones. A fabricante Allergan, que atua no setor de cuidados com a saúde, anunciou um recall de seus implantes de seios feitos de silicone texturizado.

DECLARAÇÕES INFELIZES E ATITUDES VERGONHOSAS

Definitivamente 2019 foi um ano de declarações infelizes e atitudes vergonhosas, com grandes prejuízos de imagem.

Na era digital vivemos num cenário de “Big Brother” no qual somos vigiados e julgados 24h por dia.

Não existe mais uma divisória entre vida pessoal, privada e vida pública, profissional

Um jogador do São Paulo Futebol Clube foi demitido após agressões a sua esposa terem se tornado públicas.

O DJ e influenciador digital MC Gui foi massacrado nas redes sociais após ironizar uma garota em um parque da Disney pela sua aparência, quando parecia que ela sofria de uma grave doença.

Um seguidor do repórter esportivo Mauro Naves foi demitido da empresa onde trabalhava após xingar o repórter pelo Twitter e este “marcar” a empresa para apontar o mal comportamento do cidadão.

No último dia do ano o Papa Francisco estapeou a mão de uma fiel que o agarrava em meio a uma multidão na Praça São Pedro. O vídeo com o tapa viralizou e o Papa virou motivo de críticas e até mesmo de piadas por aqui no Brasil. Em muitas das quais o Papa passou a ser chamado de “Tapa Francisco. Sua Santidade emitiu uma nota se desculpando e pedindo perdão pela sua falta de paciência, mas a Internet não esquece.

CANCELA 2019

Aqui foram citados apenas alguns casos de crise que repercutiram no Brasil em 2019 e mencionados cenários e impulsionadores de crise mais emblemáticos.

Em minha memória, 2019 será sempre lembrado pela tragédia de Brumadinho e os aprendizados a partir dela. Não tenho dúvidas que este caso foi um divisor de águas para as organizações e para os profissionais que trabalham com Gestão de Crises.

Quando vemos uma grande organização como a Vale, com muitos recursos financeiros, de infraestrutura e humanos e ainda assim vulnerável a uma tragédia como a ocorrida, poucos anos após outra similar, entendemos que algo precisa mudar imediatamente no nosso país.

É urgente que a cultura de riscos e gerenciamento de crises seja disseminada.

Incidentes graves e crises acontecem diariamente e podem afetar todos os segmentos e portes de organizações. A maioria deles é evitável e dá sinais ao longo do tempo. Se é possível prever, é possível prevenir e se preparar.

O principal erro é não acreditar que algo ruim acontecerá. Outro erro grave é negligenciar a importância de uma preparação adequada, preventiva.

Nossa vontade seria realmente de cancelar 2019. Que ao menos possamos aprender com os erros e aproveitar este momento em que entendemos que somos vulneráveis, para fazer a coisa certa.

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Status is onlineAna Flavia de Bello RodriguesSócia fundadora na Alerta de CrisePublished • 4h15 articlesPor mais que nos sensibilizemos diante de tragédias, enquanto elas acontecem longe de nós temos uma falsa sensação de proteção. Em 2019 esta lógica foi diferente. Pela magnitude das tragédias e pela sequência de fatos, nossos medos, fragilidades e vulnerabilidades vieram à tona. As crises em 2019, no entanto, foram muito além das tragédias. Esse foi um ano marcado por declarações infelizes e atitudes vergonhosas, seja por políticos, artistas, esportistas, personal influencers, pessoas comuns e até mesmo por líderes religiosos. Neste artigo eu apresento meus argumentos de porque 2019 foi um divisor de águas para o gerenciamento de crises no Brasil. hashtag#gerenciamentodecriseshashtag#gestaodecrisehashtag#alertadecrisehashtag#reputacaohashtag#fakenewshashtag#retrospectiva2019

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